O que lhe falta, nobre pescador?


Pescador, o que te falta? Já não tens o suficiente? O que mais queres?
Dei-lhe saúde, disposição, inteligência. Lhe dei uma família! Por que murmuras? Por que se revolta contra mim?
Se eu não pudesse sondar corações, poderia dizer que não sei o que te falta. Mas, como sou Senhor dos senhores, conhecedor de todos os mistérios, entendo eu não o que queres mas sim o que precisas.
Tu precisas, pescador, de humildade. Precisas reconhecer o que tenho feito por ti, e por tua família.
Podes tu me agradecer quando tens o pão por completo, mas não podes me louvar quando tens apenas a metade do mesmo? Por acaso não podeis saborear o pão mesmo ele estando na metade?
Queres riquezas. Queres bonança. Não porque necessitas; mas para poder se envaidecer para outros. Com outros.
Ora, pescador! Eu te quero assim. Tu me agradas assim. Tens o suficiente. Nem mais, nem menos.
Me louve. Me adore. Me busque.
Eu estou aqui.

Este texto é de minha autoria. Ao compartilha-lo, deves citar a autoria do mesmo.

Paixão


Diga-se que estou de passagem.
Não vim para ficar. Viajo sem destino. Sem hora pra chegar.
Me disseram uma vez que sou difícil de lidar. E que nunca me apaixono.
Talvez seja porque não sou bobo.
Quem gosta de sofrer?
Quando se está apaixonado,
mal a gente pensa;
vive ludibriado, iludido.
Mal sabe que fim terá essa paixão.
Mas de uma coisa é certa. Duas coisas podem acontecer: "Ou ela acaba. Ou ela acaba com você."
Não me apaixono. Não por não ter sentimentos.
Sou precavido. E como consigo isso?
Tenho os meus segredos!
A paixão é viciante.
Não tem limite.
Tenha cuidado!
Uma pessoa apaixonada pode fazer loucuras. Loucuras que mais tarde fará com que ela mesma se arrependa.
Ela não liga para vergonha alheia. Simplesmente age.
Você diz que nunca mais irá se apaixonar. Mas, na manhã seguinte, olha ela lá de novo.
Muitas das vezes, ela não pede nem licença. Vai logo entrando.
Faz com que a vítima viva sem desejar o amanhã.
Ela só precisa de um hospedeiro.
Há certos meios de saber quando se está ficando apaixonado.
Mas, digo-lhe que na maioria das vezes a gente não nota.
Tudo apenas acontece...

Nada acontece.

Coração acelerado e o vento frio, daqueles que congelam algo que já não pulsa como antes. O ponteiro do relógio que fazia música, hoje se arrasta, boceja, persegue-me. O café é amargo para disfarçar a angústia que a madrugada leva consigo. Não há pássaros na janela, só um gato com seus olhos amarelados em um canto qualquer.
    O livro que comecei está entreaberto em cima da cama, são os mesmo rabiscos, as viagens são as mesmas e a melancolia me espreita.
    O vazio me consome, suga minhas esperanças, desejos, sorve meus sonhos. Estou faminta. Mas de quê? Pergunta o coração, não existe resposta. A agonia chega e fica, me obrigando a ter pensamentos que nenhum presidiário terá tido, nem como últimos em sua vida.
    O sol chega, o sono não. As pálpebras teimam em pesar, mas não fecham. Eu espero, só espero. Um telefonema, uma voz, uma utopia, espero que o atlântico evapore, espero que Hitler e Martin Luther King batam a minha porta de mãos dadas.
   Nada acontece.
As horas teimam em fazer o tempo que consome. Adormeço por fora, morro por dentro. Sigo tentando me reinventar.
    Eu,
       eu...
           eu.

A menina que tinha dons (M.R. Carey)


O nome dela é melanie. Significa “a menina escura”, de uma palavra em grego antigo, mas sua pele na realidade é muito clara, então ela acha que talvez este não seja um bom nome. Melanie gosta muito do nome Pandora, mas não se pode escolher. A Srta. Justineau atribui nomes a partir de uma lista grande; as crianças novas recebem o pri- meiro nome da lista dos meninos ou o primeiro nome da lista das meninas e, segundo a Srta. Justineau, é assim e pronto. Agora já faz algum tempo que não há muitas crianças novas. Melanie não sabe por quê. Antigamente eram muitas; toda semana, ou a cada duas semanas, vozes na noite. Ordens abafadas, reclama- ções, um ou outro palavrão. Uma porta de cela batendo. E então, de- pois de algum tempo, em geral um ou dois meses, uma cara nova na sala de aula — um menino ou menina que ainda não aprendeu a falar. Mas eles pegam rápido. A própria Melanie já foi nova, antigamente, mas é difícil se lem- brar disso porque já faz muito tempo. Foi antes que existisse alguma palavra; só havia coisas sem nomes, e as coisas sem nomes não ficam na sua cabeça. Elas se dispersam, depois somem. Agora ela tem 10 anos e a pele de uma princesa de conto de fa- das; uma pele branca como a neve. Então ela sabe que, quando cres- cer, será bela, terá príncipes atropelando-se para subir em sua torre e resgatá-la. Supondo-se, é claro, que ela tenha uma torre. Nesse meio-tempo, ela tem uma cela, o corredor, a sala de aula e o chuveiro. A cela é pequena e quadrada. Tem uma cama, uma cadeira e uma mesa. Nas paredes, que são pintadas de cinza, existem quadros; um

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grande, da floresta amazônica, e um menor, de um gato bebendo leite em um pires. Às vezes o sargento e seu pessoal mudam as crianças, en- tão Melanie sabe que algumas celas têm quadros diferentes. Ela antes tinha um cavalo numa campina e uma montanha com neve no topo e, deste, Melanie gostava mais. É a Srta. Justineau que coloca os quadros nas paredes. Ela os re- corta da pilha de revistas velhas da sala de aula e os prende nos cantos com pedaços de uma coisa azul e pegajosa. Ela junta a coisa pegajo- sa e azul como um avarento de uma história. Sempre que baixa um quadro ou coloca um novo, ela raspa cada pedacinho preso na parede e o coloca na bolinha redonda da coisa que ela guarda na mesa. Quando acaba, acaba, diz a Srta. Justineau. O corredor tem vinte portas do lado esquerdo e dezoito do lado direito. Também tem uma porta em cada ponta. Uma porta é pintada de vermelho e leva à sala de aula — então Melanie pensa nela como a ponta do corredor da sala de aula. A porta do outro lado é de aço cinza, é vazia e muito, mas muito grossa. Onde dá, é meio difícil sa- ber. Uma vez, quando Melanie era levada de volta à cela, a porta estava fora das dobradiças, tinha uns homens trabalhando nela, dava para ver todos aqueles ferrolhos e pedaços salientes pelas beiras e assim, quando se fechava, era muito complicada de abrir. Depois da porta, havia uma escada comprida de concreto que subia sem parar. Ela não devia ver nada dessas coisas e o sargento disse, “A safadinha tem mil olhos”, enquanto empurrava sua cadeira para dentro da cela e batia a porta. Mas ela viu e ela se lembra. Ela também ouve, e das conversas entreouvidas Melanie cons- truiu um senso deste lugar em relação a outros lugares que nunca viu. Este lugar é o bloco. Fora do bloco fica a base, que é o Echo Ho- tel. Fora da base fica a região 6, com Londres uns 45 quilômetros ao sul e Beacon depois de mais 70 quilômetros — e nada depois de Bea- con, exceto o mar. A maior parte da região 6 está limpa, mas só o que a mantém assim são as patrulhas de queimada, com seus estilhaços e granadas. É para isso que serve a base, Melanie tem certeza absoluta. Manda patrulhas de queimada para eliminar os famintos.

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As patrulhas de queimada precisam ter muito cuidado, porque ainda existem muitos famintos lá fora. Se eles sentem seu cheiro, se- guem você por cem quilômetros e, quando o pegam, comem. Melanie fica feliz por viver no bloco, atrás da porta de aço grande, onde está a salvo. Beacon é muito diferente da base. É toda uma cidade grande cheia de gente, com prédios que vão até o céu. Tem o mar de um lado e fossos e campos minados dos outros três, então os famintos não conseguem chegar perto. Em Beacon, você pode passar toda a sua vida sem ver um faminto que seja. E é tão grande que deve ter cem bilhões de pessoas lá, todas morando juntas. Melanie tem esperanças de um dia ir a Beacon. Quando a missão estiver concluída e quando (a Dra. Caldwell disse uma vez) tudo estiver dobrado e guardado. Me- lanie tenta imaginar esse dia; as paredes de aço se fechando como as páginas de um livro, e depois... Outra coisa. Outra coisa lá fora, é para lá que todos eles vão. Vai dar medo. Mas será tão maravilhoso! Pela porta de aço cinza, toda manhã, o sargento entra, o pes- soal do sargento entra, e finalmente entra a professora. Eles andam pelo corredor, passam pela porta de Melanie, trazendo o cheiro forte  e amargo de química que sempre têm; não é um cheiro agradável, mas é animador, porque significa o começo das aulas de mais um dia. Ao som dos ferrolhos deslizando e dos passos, Melanie corre à porta de sua cela e fica na ponta dos pés para espiar pela janelinha de tela e ver as pessoas que passam. Ela dá bom-dia a eles, mas eles não podem responder e em geral não respondem. O sargento e seu pessoal nunca respondem, nem a Dra. Caldwell ou o Sr. Whitaker. E a Dra. Selkirk passa muito rápido e nunca olha para o lado certo, então Melanie não consegue ver seu rosto. Mas às vezes Melanie re- cebe um aceno da Srta. Justineau ou um sorriso rápido e furtivo da Srta. Mailer. A professora designada para o dia passa direto para a sala de aula, enquanto o pessoal do sargento começa a destrancar as portas das celas. Seu trabalho é levar as crianças à sala, depois disso eles so-

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mem de novo. Eles seguem um procedimento e isto consome muito tempo. Melanie pensa que deve ser o mesmo para todas as crianças, mas é claro que ela não pode ter certeza, porque sempre acontece den- tro das celas e a única cela que Melanie vê por dentro é a dela própria. Para começar, o sargento bate em todas as portas e grita para as crianças se prepararem. O que ele costuma gritar é “Trânsito!”, mas às vezes acrescenta outras palavras. “Trânsito, seus cretinos!”, ou “Trân- sito! Vamos ver vocês!” Sua cara grande e marcada surge na janelinha de tela e ele olha feio para você, para saber se já saiu da cama e está se mexendo. E uma vez, Melanie se lembra, ele fez um discurso — não para as crianças, mas para o pessoal dele. “Alguns de vocês são novos. Vocês não conhecem o inferno a que foram recrutados e não sabem o infer- no onde estão. Têm medo desses monstrinhos desgraçados, não têm? Ora, muito bem. Abracem esse medo em sua alma imortal. Quanto mais medo tiverem, menos chances terão de se dar mal.” Depois ele gritou, “Trânsito!”, o que foi uma sorte, porque na hora Melanie não sabia se aquilo era o grito de trânsito ou não. Depois que o sargento diz “Trânsito”, Melanie veste rapidamen- te a blusa branca pendurada no gancho ao lado da porta, uma calça branca do receptáculo na parede e os sapatos brancos arrumados ao lado de sua cama. Depois se senta na cadeira de rodas ao pé da cama, como lhe ensinaram a fazer. Põe as mãos nos braços da cadeira e os pés no apoio. Fecha os olhos e espera. Conta enquanto espera. A con- tagem mais alta a que chegou foi dois mil, quinhentos e vinte e seis; a mais baixa, mil novecentos e um. Quando a chave roda na porta, ela para de contar e abre os olhos. O sargento entra com sua arma e aponta para ela. Depois entram dois do pessoal do sargento, que apertam e afivelam as tiras da cadeira em volta dos pulsos e dos tornozelos de Melanie. Também tem uma tira para o pescoço; eles apertam essa por último, quando as mãos e os pés de Melanie estão totalmente presos, e sempre fazem isso de trás. A tira serve para que eles nunca tenham de colocar as mãos na frente


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do rosto de Melanie. Melanie às vezes diz, “Eu não mordo!” Ela diz isso de brincadeira, mas o pessoal do sargento nunca ri. O sargento riu uma vez, na primeira que ela disse isso, mas foi um riso desagradá- vel. Depois ele disse, “Até parece que vou te dar uma chance,  docinho”. Quando Melanie está toda amarrada na cadeira e não pode me- xer as mãos, os pés, nem a cabeça, eles a empurram para a sala de aula e a colocam junto de sua carteira. A professora pode estar falando com outras crianças, ou escrevendo alguma coisa no quadro-negro, mas ela (ou ele, se for o Sr. Whitaker, o único dos professores que é um ele) em geral vai parar e dizer, “Bom-dia, Melanie”. Assim, as crianças sentadas na fila da frente saberão que Melanie entrou na sala e podem dizer bom-dia também. A maioria delas não consegue enxer- gá-la quando ela entra, é claro, porque estão todas em suas próprias cadeiras com os pescoços presos pelas tiras, então não conseguem vi- rar a cabeça tanto assim. Este procedimento — levar na cadeira de rodas, a professora dan- do um bom-dia e depois o coro de cumprimentos das outras crianças — acontece mais nove vezes, porque são nove crianças que entram na sala de aula depois de Melanie. Uma delas é Anne, que antigamente era a melhor amiga de Melanie na turma e talvez ainda seja, só que da última vez que trocaram as crianças de lugar (o sargento chama de “embaralhar as cartas”), elas acabaram se sentando muito separadas e é difícil ser a melhor amiga de alguém com quem não se consegue falar. Outro é Kenny, de quem Melanie não gosta, porque ele a chama de Melão ou M-M-M-Melanie para lembrar que ela às vezes gaguejava em aula. Quando todas as crianças estão na sala, começa a aula. Todo dia tem tabuada e ditado, e todo dia tem prova de retenção, mas não pa- rece haver um plano para o resto das aulas. Alguns professores gos- tam de ler livros em voz alta e fazem perguntas sobre o que acabaram de ler. Outros fazem as crianças aprenderem fatos históricos, datas, tabelas e equações, e nisso Melanie é muito boa. Ela sabe todos os reis e rainhas da Inglaterra e quando eles reinaram, e todas as cidades do


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Reino Unido com suas áreas, populações e os rios que passam por elas (se tiverem rios), e seus lemas (se tiverem lemas). Ela também sabe as capitais da Europa, suas populações e os anos em que estiveram em guerra com a Grã-Bretanha, o que a maioria delas fez numa época ou outra. Ela não acha difícil se lembrar dessas coisas; lembra para não ter tédio, porque o tédio é pior do que quase qualquer coisa. Se ela sabe a área de superfície e a população, pode deduzir mentalmente a den- sidade populacional média e faz uma análise de regressão para supor quantas pessoas haveria em dez, vinte ou trinta anos. Mas isso tem um problema. Melanie aprendeu as coisas sobre as cidades do Reino Unido nas aulas do Sr. Whitaker e ela não sabe se pegou bem todos os detalhes. Porque um dia, quando o Sr. Whitaker estava meio estranho e sua voz era toda estranha e confusa, ele disse uma coisa que deixou Melanie preocupada. Ela perguntava a ele se 1.036.900 era a população de toda Birmingham, com todos os seus subúrbios, ou só da área metropolitana central e ele disse, “E quem se importa? Nada disso tem mais importância nenhuma. Eu só disse a vocês porque todos os livros didáticos que temos têm trinta anos!” Melanie insistiu, porque sabia que Birmingham é a maior cidade da Inglaterra depois de Londres e queria ter certeza se os números eram exatos. — Mas os números do censo de... — disse ela. O Sr. Whitaker a interrompeu. — Meu Deus, Melanie, isso é irrelevante. É história antiga! Não existe mais nada lá fora. Nadica de nada. A população de Birmingham é zero. Então é possível, até muito provável, que algumas listas de Mela- nie precisem ter alguns aspectos atualizados. As crianças tinham aulas às segundas, terças, quartas, quintas e sextas-feiras. Aos sábados, elas ficavam trancadas em seus quartos o dia todo e tocava música pelo sistema de alto-falantes. Ninguém aparecia, nem mesmo o sargento, e a música era alta demais para


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conversar. Melanie teve a ideia, muito tempo atrás, de inventar uma linguagem que usasse sinais em vez de palavras, para que as crian- ças pudessem conversar através das janelinhas de tela, e ela inventou mesmo a língua, o que foi divertido de fazer, mas quando pergun- tou à Srta. Justineau se podia ensinar à turma, a Srta. Justineau disse que não, bem alto e firme. Fez Melanie prometer não falar de sua lin- guagem de sinais com nenhum dos outros professores, em especial o  sargento. — Ele já é bem paranoico — disse ela. — Se pensar que você está falando dele pelas costas, vai perder o que resta de seu juízo. Então Melanie nunca pôde ensinar as outras crianças a falar na linguagem de sinais. Os sábados eram longos e maçantes, era difícil passar por eles. Melanie conta em voz alta e para si mesma histórias que as crianças ouviram em aula, ou canta provas matemáticas, como a prova para a infinidade de números primos, no ritmo da música. Não tem pro- blema fazer isso porque a música esconde sua voz. Caso contrário, o sargento entraria e diria a ela para parar. Melanie sabe que o sargento ainda está ali aos sábados porque num sábado, quando Ronnie bateu na janelinha de tela até sua mão sangrar, o sargento apareceu. Ele levou dois de seus homens, todos os três vestiam uns trajes grandes que escondiam o rosto, eles entraram na cela de Ronnie e Melanie adivinhou, pelo barulho, que tentavam amarrar Ronnie na cadeira. Ela também adivinhou, pelo barulho, que Ronnie lutava e dificultava as coisas para eles, porque ela ficava gritan- do e dizendo, “Me deixa em paz! Me deixa em paz!” Então começou uma batida que continuou por algum tempo enquanto alguém do pessoal do sargento gritava, “Meu Deus, não...”, depois outra pessoa também gritou e alguém disse, “Segure o outro braço! Prendam-na!” E tudo ficou em silêncio de novo. Melanie não sabe o que aconteceu depois disso. O pessoal que trabalha para o sargento ficou por ali e trancou todas as telas das janelinhas, assim as crianças não puderam ver do lado de fora. Elas


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ficaram trancadas o dia todo. Na segunda-feira seguinte, Ronnie não estava mais na sala de aula e ninguém parecia saber o que tinha acon- tecido com ela. Melanie prefere pensar que tem outra sala de aula em algum lugar na base e que Ronnie foi para lá, então um dia desses ela pode voltar, quando o sargento embaralhar as cartas de novo. Mas o que ela realmente acredita, quando não consegue deixar de pensar nisso, é que o sargento levou Ronnie para castigá-la por ser má e nun- ca mais vai deixar que ela veja nenhuma das outras crianças. Os domingos são como os sábados, só que tem a comida e o chu- veiro. No início do dia, as crianças são colocadas em suas cadeiras como se fosse um dia de aula normal, mas com a mão e o braço direi- tos desamarrados. Elas são empurradas nas cadeiras para o chuveiro, que é a última porta à direita, logo antes da porta de aço. No chuveiro, que tem ladrilhos brancos e é vazio, as crianças es- peram sentadas até que todo mundo seja trazido. Depois o pessoal do sargento traz as tigelas com a comida e colheres. Eles colocam uma tigela no colo de cada criança, com a colher já presa ali. Na tigela tem um milhão de larvas, todas se mexendo e se retor- cendo umas por cima das outras. As crianças comem. Nas histórias que eles leem, às vezes as crianças comem outras coisas — bolo e chocolate e salsicha e mingau e batata frita e balas e espaguete e almôndegas. As crianças ali só comem larvas e só uma vez por semana, porque — como a Dra. Selkirk explicou uma vez, quando Melanie perguntou — seus corpos são espetacularmente efi- cientes no metabolismo de proteínas. Elas não precisam de nenhuma dessas outras coisas, nem mesmo beber água. As larvas lhes dão tudo de que precisam. Quando terminam de comer e as tigelas são levadas de novo, o pessoal do sargento sai, fecha as portas e roda os lacres. O chuveiro fica completamente escuro, porque não tem luz nenhuma ali dentro. Os canos atrás das paredes começam a fazer um barulho de alguém que se esforça para não rir e cai um spray químico do teto.


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É a mesma substância química que está nos professores, no sar- gento e no pessoal do sargento, ou pelo menos o cheiro é o mesmo, mas é muito mais forte. No início arde um pouco. Depois arde muito. Deixa os olhos de Melanie inchados, avermelhados e meio cegos. Mas evapora rapidamente das roupas e da pele, assim, depois de meia hora sentada na sala escura e silenciosa, não resta nada além do cheiro, e enfim o cheiro também some, ou pelo menos eles ficam acostuma- dos e não é mais tão ruim, eles só esperam em silêncio que a porta seja destrancada e o pessoal do sargento entre e os pegue. É assim que as crianças tomam banho e, por esse motivo, se não por nenhum outro, os domingos devem ser o pior dia da semana. O melhor dia da semana é quando a Srta. Justineau dá aula. Nem sempre é o mesmo dia e em algumas semanas ela nem aparece, mas sempre que é empurrada na cadeira para a sala de aula e vê a Srta. Justineau ali, Melanie sente uma onda de pura felicidade, como se seu coração voasse dela para o céu. Ninguém fica entediado nos dias da Srta. Justineau. É uma emo- ção para Melanie até olhar para ela. Agrada-lhe adivinhar o que a Srta. Justineau estará vestindo, se seu cabelo estará no alto ou solto. Em geral está solto, é comprido, preto e muito crespo, então parece uma cachoeira. Mas às vezes ela o amarra num nó na nuca, bem apertado, e isso também é bom, porque faz com que seu rosto apareça mais, quase como se ela fosse uma estátua ao lado de um templo, escorando o teto. Uma cariátide. Mas o rosto da Srta. Justineau aparece de qual- quer jeito porque é de uma cor tão, mas tão maravilhosa! É marrom- escura, como a madeira das árvores no quadro da floresta tropical de Melanie, cujas sementes só crescem nas cinzas de um incêndio na mata, ou como o café que a Srta. Justineau serve de sua garrafa térmi- ca na xícara na hora do intervalo. Só que é mais escura e mais viva do que essas coisas, com muitas outras cores misturadas, então não há nada com que se possa comparar. Só o que se pode dizer é que é tão escura quanto a pele de Melanie é clara. E às vezes a Srta. Justineau usa um cachecol ou coisa assim por cima da blusa, amarrado no pescoço e nos ombros. E nesses dias Me-


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lanie pensa que ela parece um pirata ou uma das mulheres de Ha- melin, quando chega o Flautista. Mas a maioria das mulheres de Hamelin nas figuras do livro da Srta. Justineau é velha e corcunda, e a Srta. Justineau é jovem, não é nada corcunda, é alta e muito bonita. Então ela na verdade parece mais um pirata, só que não tem as botas compridas e não tem espada. Quando a Srta. Justineau dá aula, o dia é cheio de coisas mara- vilhosas. Às vezes ela lê poemas em voz alta, ou traz a flauta e toca, ou mostra às crianças as figuras de um livro e conta-lhes histórias sobre as pessoas nas figuras. Foi assim que Melanie soube de Pan- dora, Epimeteu e a caixa cheia das maldades do mundo, porque um dia a Srta. J lhes mostrou uma figura num livro. Era uma imagem de uma mulher abrindo uma caixa e dela saía um monte de coisas assustadoras. — Quem é essa? — perguntou Anne à Srta. Justineau. — Esta é Pandora — disse a Srta. Justineau. — Ela era uma mulher maravilhosa. Todos os deuses a abençoaram e lhe deram dons. É isso que seu nome significa... “A menina com todos os dons.” Então ela era inteligente, corajosa, bonita, engraçada e tudo o mais que vocês iam querer ser. Mas tinha um defeito pequenininho, ela era muito... e quero dizer muito mesmo... curiosa. A essa altura ela havia prendido a atenção das crianças, elas es- tavam adorando e a Srta. Justineau também, e no fim elas ouviram a história toda, que começava com a guerra entre os deuses e os titãs e terminava com Pandora abrindo a caixa e deixando sair todas aque- las coisas terríveis. Melanie disse que não achava certo culpar Pandora pelo que aconteceu, porque era uma armadilha que Zeus tinha preparado para os mortais e ele a fez agir assim de propósito, só para cair na  armadilha. — Pode apostar, querida! — disse a Srta. Justineau. — Os homens têm o prazer e as mulheres, o castigo. — E ela riu. Melanie fez a Srta. Justineau rir! Esse foi um dia muito bom, mesmo que Melanie não soubesse o que havia de tão engraçado no que ela disse.


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O único problema com os dias de aula da Srta. Justineau é que o tempo passa rápido demais. Cada segundo é tão precioso para Me- lanie que ela nem pisca; só fica sentada ali, de olhos arregalados, tra- gando tudo o que diz a Srta. Justineau, memorizando para poder repassar sozinha depois, em sua cela. E sempre que pode ela faz per- guntas à Srta. Justineau, porque o que ela mais gosta de ouvir, e de se lembrar, é da voz da Srta. Justineau dizendo seu nome, Melanie, de um jeito que a faz se sentir a pessoa mais importante do mundo.